Dualismo mente-corpo de Descartes
Os seres humanos, pensava Descartes, além de corpos também possuem uma mente, que é a mesma coisa que a alma. É ela que define quem somos.
O filósofo do século XVII René Descartes é o defensor mais conhecido do dualismo de mente-corpo.
Segundo Descartes, seres humanos são compostos de dois tipos diferentes de substâncias que estão de alguma forma ligadas entre si. Por um lado, temos corpos e fazemos parte do mundo físico. Segundo o filósofo, o corpo é uma máquina feita de carne e osso. Suas articulações e tendões agem como pivôs, polias e cordas. Seu coração é uma bomba e seus pulmões são foles. Porque o corpo é uma coisa física, está sujeito às leis da física e está localizado no espaço e no tempo. Assim como os humanos, os animais também são máquinas, e seu comportamento é puramente um produto das leis mecânicas.
Os seres humanos, no entanto, são os únicos que, além de corpos, também possuem mentes. De acordo com Descartes, a mente (que é idêntica à alma) é o seu eu “real”. Se você perder um braço ou uma perna, seu mecanismo corporal estará comprometido, mas você ainda é uma pessoa tão completa quanto antes. Porém, se perder sua mente, não será mais você, deixará de existir.
Essa concepção de Descartes pode ser chamada de dualismo mente-corpo ou dualismo psicofísico. Como Descartes criou uma versão clássica dessa posição, também é comumente referida, em sua honra, como dualismo cartesiano.
Descartes se opunha, assim, a uma teoria filosófica sobre a mente conhecida como fisicalismo. De acordo com essa concepção, a mente é física como o corpo.
Por que Descartes defendia o dualismo mente-corpo?
Descartes oferece vários argumentos para nos convencer de que a mente e o corpo são duas substâncias distintas. O que ele faz é examinar aquilo que chamamos de mente e de corpo. Através disso, mostra que ambos possuem características diferentes e, portanto, são tipos diferentes de realidades. Para resumir a história toda, podemos chamar os argumentos de Descartes de: argumento da dúvida, da divisibilidade e da consciência.
O argumento da dúvida
Um dos argumentos centrais de Descartes em favor do dualismo mente-corpo é baseado no que pode e não pode ser posto em dúvida. Num livro chamado Meditações Metafísicas, Descartes chega à conclusão de que pode duvidar de tudo – inclusive de que possui um corpo e que o mundo exterior existe – exceto da própria existência como ser pensante. A famosa frase “penso, logo existo” expressa essa conclusão.
O argumento de Descartes poderia ser expresso assim:
Posso duvidar que meu corpo existe.
Não posso duvidar que minha mente existe.
Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser idênticas.
Portanto, a mente e o corpo não são idênticos.
As premissas 1 e 2 identificam duas propriedades diferentes do corpo e da mente que Descartes descobriu quando empregou seu método de dúvida. Ele descobriu que podia ter absoluta certeza de sua mente, mas por causa da possibilidade de ilusão (sonhos e alucinações), ele poderia estar enganado e, portanto, incerto, sobre a existência de seu corpo.
Descartes ofereceu esse argumento como uma prova lógica de que a mente e o corpo não poderiam ser a mesma coisa.
Este argumento tem problemas, no entanto. A propriedade de estar sujeito a dúvida não é o mesmo tipo de propriedade que ter 1,80 metros de altura ou ser careca. O fato de eu poder duvidar de algo é tanto uma propriedade psicológica minha quanto é o objeto da minha dúvida. Para ver as dificuldades com esse argumento, considere o seguinte argumento que tem essencialmente a mesma forma:
Estou em dúvida se o café está quente.
Não tenho dúvidas que o café é escuro.
Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser idênticas.
Portanto, o café que não tenho certeza se está quente não é idêntico ao café que é escuro.
Assim, é possível que Descartes tenha mais certeza sobre sua mente do que sobre seu corpo, simplesmente porque ele não entende a natureza de cada um completamente o suficiente para ver que eles são idênticos.
O argumento da divisibilidade
O argumento a seguir faz uso da mesma forma argumentativa de antes, mas evita a dificuldade de lidar com nossas atitudes psicológicas.
O corpo é divisível.
A mente é indivisível.
Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser idênticas.
Portanto, a mente e o corpo não são idênticos.
Neste argumento a favor do dualismo mente-corpo, a primeira premissa de Descartes é baseada na noção de que todos os objetos materiais possuem extensão e qualquer coisa extensa é divisível. Assim, porque o corpo é um objeto material, pode sempre ser dividido em dois e dividido e dividido novamente (como numa autópsia).
Parece fácil conceder a Descartes a verdade da primeira premissa, mas e a segunda premissa? Certamente, se assumirmos que a mente é uma substância espiritual, então, como uma coisa espiritual não tem extensão, ela não pode ser dividida (ou pelo menos dividida da mesma forma que um corpo é). Mas a noção de que a mente é uma entidade espiritual é o que Descartes está tentando provar, então simplesmente assumir esse ponto parece suscitar a questão.
Sem fazer essa suposição, podemos simplesmente olhar para nossa experiência mental e descobrir que, qualquer que seja a natureza da mente, não é o tipo de coisa que tem partes ou pode ser dividida? Ou a segunda premissa de Descartes é questionável? É possível que a mente tenha divisões ou partes distinguíveis em algum sentido?
Alguns argumentariam, ao contrário de Descartes, que nossa vida mental parece dividida. Por exemplo, podemos sentir amor e raiva ao mesmo tempo em relação a alguém. Ou frequentemente achamos que nossos princípios morais nos puxam em uma direção e nossos sentimentos em outra. Os anais da psiquiatria estão cheios de casos de múltiplas personalidades, ou casos em que alguém conhece algum fato desconfortável em uma parte da psique, enquanto outra parte da mente da pessoa trabalha horas extras para negá-la.
Um tipo de cirurgia cerebral, conhecida como comissurotomia cerebral, é comumente usada para tratar a epilepsia. O cirurgião corta o feixe de nervos (o corpo caloso) que liga os dois hemisférios do cérebro. Pacientes com esses cérebros divididos experimentam uma fragmentação dentro de sua experiência. A parte do cérebro que processa dados visuais não pode se comunicar com a parte que processa as coisas linguisticamente. Essas considerações parecem indicar que, seja o que for que compõe a mente, é algo que tem componentes. Essa conclusão, pelo menos, torna plausível a sugestão de que diferentes partes de nosso cérebro produzem diferentes facetas de nossa vida mental e, portanto, coloca em dúvida a nítida distinção que Descartes está tentando estabelecer aqui entre a mente e o corpo.
O argumento da consciência
Ainda outro argumento pode ser encontrado nos escritos de Descartes, que é baseado no fato de que sua mente é uma coisa pensante enquanto seu corpo não é. Pensar para Descartes não significa simplesmente raciocínio. Descartes usa a palavra “pensamento” para se referir a toda a gama de estados conscientes como conhecer, duvidar, desejar, querer, imaginar, sentir e assim por diante.
Portanto, seu ponto é que a mente é diferente de qualquer coisa no mundo natural, porque ela é consciente. Em contraste, Descartes diz que “quando eu examino a natureza do corpo, não encontro absolutamente nada nele que tenha sabor de pensamento.”
O esboço do argumento da consciência segue os contornos dos argumentos anteriores, exceto que Descartes inclui a premissa de que “os objetos materiais não podem ter a propriedade da consciência”. Porque o corpo é um objeto material, não pode ser consciente, mas sabemos de nossa experiência imediata de que nossa mente é consciente. A partir dessas premissas, Descartes chega novamente à sua conclusão dualista.
Crítica ao dualismo mente-corpo
O dualismo de mente-corpo de Descartes, por vezes, tem sido chamado o compromisso cartesiano. Descartes foi um defensor entusiasta da nova ciência mecanicista. Ele também era um católico sincero. Uma de suas preocupações, portanto, era conciliar as visões científica e religiosa do mundo.
Ao dividir a realidade em territórios completamente separados, ele foi capaz de atingir esse objetivo. Uma parte da realidade é composta de substâncias físicas que podem ser estudadas pela ciência e explicadas por princípios mecanicistas. Esta parte do universo é um mecanismo gigantesco, um relógio. Todos os eventos neste domínio são determinados pelas leis que os físicos descobrem. Assim, fazemos observações, formulamos leis físicas e fazemos previsões precisas sobre eventos físicos. Na medida em que somos corpos, a ciência pode explicar nossos movimentos físicos.
A outra parte da realidade consiste em substâncias mentais ou espirituais. Nossas mentes são livres para pensar e desejar como desejamos, porque as substâncias mentais não são governadas pelas leis mecânicas. Desta forma, as pessoas (ao contrário de seus corpos) têm genuíno livre-arbítrio. Se você pular em uma piscina, por exemplo, a queda do seu corpo é regida pelas leis da natureza. Sua decisão de dar esse salto, no entanto, é livremente escolhida e não pode ser explicada pela física.
No domínio físico, a ciência é a autoridade dominante e nos dá a verdade. Nós não consultamos a Igreja ou a Bíblia para ver quão rápido o coração bombeia o sangue; a ciência nos informa sobre tais fatos. Mas de acordo com o compromisso cartesiano, a ciência não pode nos falar sobre o destino eterno de nossas almas, pode nos dizer apenas sobre nossos corpos. Por isso, no campo espiritual, diz Descartes, a religião ainda mantém sua autoridade e verdade.
Descartes tinha um problema remanescente. Embora a mente e o corpo estejam separados, ele estava convencido de que eles interagem. Assim, a versão específica do dualismo de Descartes é chamada de interacionismo. Parece fácil entender como as entidades mentais interagem (uma ideia leva ao pensamento de outra ideia), e parece fácil entender como as entidades físicas interagem (uma bola de bilhar colide com outra, colocando-a em movimento). O problema é, no entanto, como uma substância espiritual (a mente) pode interagir causalmente com uma substância física (o corpo)?
Descartes estava bem ciente desse problema; no entanto, suas tentativas de responder a essa pergunta foram a parte menos satisfatória de sua filosofia. Em seus dias, os cientistas estavam cientes da existência da glândula pineal, mas não sabiam o que a glândula fazia.
Então, Descartes tinha um órgão (a glândula pineal) cuja função era desconhecida. Ele tinha uma função (interação corpo-mente) cuja localização era desconhecida. Ele concluiu que poderia resolver ambos os problemas com uma hipótese: a glândula pineal é onde a mente e o corpo interagem. Descartes achava que a glândula pineal era afetada por “espíritos vitais” e, por meio desse intermediário, a alma podia alterar os movimentos do cérebro, que então afetavam o corpo e vice-versa.
Obviamente, explicar a interação mente-corpo referindo-se a glândula pineal não resolve o problema, porque essa glândula é apenas outro objeto material que faz parte do corpo. Se os “espíritos vitais” que medeiam a interação causal são algum tipo de força física como o magnetismo, então ainda não sabemos como o físico pode afetar o mental e vice-versa. O mesmo problema existe se “espíritos vitais” são de natureza mental.
Referências e leitura adicional
Para conhecer mais sobre as teorias de Descartes, leia o artigo Descartes: ideias e biografia. Esse texto oferece uma visão geral sobre o pensamento desse que é um grandes filósofos da modernidade. Também sugerimos a leitura dos livros do filósofo, sobretudo o Discurso do método, é agradável e instrutivo. Para conhecer mais da discussão filosófica sobre a mente, veja a série de artigos que publicamos sobre esse tópico em filosofia da mente.
Descartes, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Descartes, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2016.